Há uma parte essencial de nossa história literária que parece ter sido relegada ao plano de um deliberado esquecimento, a uma espécie de limbo cultural sem volta, onde muitas obras ficam quase invisíveis, como se sobre cada uma delas pairasse um véu denso e opaco, que nem sequer os compêndios de história da literatura brasileira – em duas ou três linhas – conseguem arrancar. E a confusão se faz maior porque se perde do horizonte a noção de valor documental de que as obras são portadoras, especialmente aquelas que remontam ao período colonial. E a lista podia ser extensa. Não somente porque algumas obras desaparecem de nosso debate, como outras muitas reaparecem diminuídas, declaradas intelectualmente falimentares. E assim, o cânone permanece igual a si mesmo, sem interferências e ruídos que possam aumentar o quadro de nossa reflexão. Caso exemplar é o deste as Frutas do Brasil numa nova, e ascetica Monarchia consagrada à Santissima Senhora do Rosario, de Frei Antônio do Rosário, publicado em 1702, na cidade de Lisboa.
Segundo, Borba de Moraes, Antônio do Rosário nasceu em Lisboa em 1647. Viajou pelo Brasil, vivendo na qualidade de missionário entre a Bahia e Pernambuco. Faleceu em 1704, no convento de São Francisco, em Salvador. Dentre as suas publicações, Frutas do Brasil é a que mais se destaca.
Essa “nova e ascética monarquia” inaugura um modelo de reflexão e de produção metafórica que – como bem viu Wilson Martins – havia de chegar não apenas a Rocha Pita e a seus pares, mas também à obra imediatamente posterior de Antonil. Mais precisamente ao capítulo oito da Cultura e opulência do Brasil, na célebre descrição das fornalhas do engenho como inferno. E talvez mais. Uma ponte entre Vieira e Antonil, se aqui fossem convocados os Sermões do Rosário.
E, no entanto, o círculo de giz deve ser mais largo. Frutas do Brasil é obra que merece figurar no rol das interpretações alegóricas do Brasil colonial, como tantos e dispersos herbários, bestiários e lapidários, que, por força de metáfora ou analogia, alimentam parte essencial de nosso imaginário, no espaço anfíbio entre o erudito e o popular. Bem se harmonizam a medicina de Curvo Semedo com os bichos de Cardim e as ilusões de Rocha Pita. O boto enamorado. A triaga brasílica. O soberano abacaxi. E o místico maracujá. Difícil não lembrar “A Ilha de Maré”, de Manuel Botelho de Oliveira:
“Vereis os Ananases,
que para Rei das fruitas são
capazes;
vestem-se de escarlata
com majestade grata,
que para ter do Império a gravidade
logram da c´roa verde a majestade;
mas quando têm a c´roa levantada
de picantes espinhos adornada,
nos mostram que entre Reis,
entre Rainhas
não há c´roa no Mundo sem
espinhas.
Este pomo celebra toda a gente,
é muito mais que o pêssego
excelente,
pois lhe leva aventagem gracioso
Por maior, por mais doce e mais
cheiroso.”
A matriz é de fundo barroco. E as maravilhas servem para ampliar o humano entendimento. Como se a natureza fosse um livro exemplar, de cujas páginas era preciso tirar a essência. O mundo dos homens e o cosmos se espelham, tal como nos sermões do padre Vieira, ou na visão da hóstia de Manuel Bernardes. Cada fragmento como prova da Totalidade. O teatro do mundo para Frei Antônio tem como atores e cenário as frutas da colônia. As lições de ordem política e teológica ilustram uma divisão fortemente hierarquizada da sociedade. Cada setor de atividades tendo uma fruta correspondente. O ananás é o rei por causa de sua coroa, beleza e sabor. A cana-de-açúcar é a rainha, tão doce, primeira e necessária. O maracujá representa a paixão de Cristo em todas as suas icissitudes. E cada imagem e amplia intensamente, como e fora uma lente de aprofundar elevos e detalhes.